terça-feira, 14 de dezembro de 2021

"Bem-vindo ao deserto do real"

Tomei a pílula vermelha e aqui estou. Presa ou liberta? Este é o real. A verdade o libertará. Ou não. 

Como Doris disse no roteiro, estou rodando, rodando e continuo no mesmo lugar. Rodando ao redor de meu próprio eixo.

A vida está parada.

O ar está parado.

E que está podre fede. Pois o ar não leva o mau cheiro embora.

Não há brisa. 

Apenas calor mormacento. Ar parado. E o que está morto, apodrece.

Queria dizer palavras lindas. Mas elas fugiram para longe. Não as posso alcançar.

Queria dizer eu te amo, mas nem isso tem saído ultimamente.

Só sinto o ar parado. O calor. O tédio. E a angústia. 

Angustiae. Angustiarum. Pluralíssimo.

terça-feira, 30 de março de 2021

Ele olha de volta

Olha fundo dentro da sombra. Mira de frente o abismo. Ele olha de volta. Profundamente. Revira a sua alma. Acorda seus demônios. Coloca todos para trabalhar ao mesmo tempo.
Você, capitão da minha alma, pode ter domado muitos dos meus demônios com sua alma dourada. Mas a tristeza ainda está aqui. Tem morada cativa. Transforma coisas pequenas em catástrofes.
Como um botão com hora marcada para ser ativado, ela surge. Um movimento em falso e ela me domina. Às vezes minutos. Às vezes horas.
E então, como ela veio, ela passa. Como uma chuva torrencial de fim de verão.
Deixa os estragos para trás. Quem sobreviveu que conserte o que restou.

sábado, 9 de janeiro de 2021

Maria das Dores

Era dessas dores que apareciam de vez em quando. Meio sem avisar, meio em forma de avalanche. Ferida antiga mal cicatrizada que se rompia em alguns momentos. Era dessas dores que chegavam trazendo muitas lágrimas repentinas. E o melhor era chorá-las. Engoli-las era pior. A sensação demorava mais a passar. E, assim como surgiam, as dores desapareciam. Com poucos vestígios. Um nariz meio ranheta, olhos meio avermelhados. Nada que um espelho e um pouco de água não disfarçassem. Pois ela aprendeu que chorar na frente de outras pessoas era demonstrar fraqueza. E tudo o que ela não queria ser era fraca. Lavava o rosto, secava, conferia no espelho do local de trabalho. Pronto. Quase nova. Mais um dia na rotina de dias repetidos. Mais um dia igual a todos os outros, passados tentando viver dignamente, tentando evitar que pessoas mal intencionadas se aproveitassem dos recursos públicos. Assim é a vida de Maria das Dores, funcionária de repartição pública. Exímia batedora de carimbos, escritora prolífica de ofícios administrativos, descascadora de abacaxis políticos.

quarta-feira, 9 de dezembro de 2020

Lembra-te de que és mortal

 Memento mori. Lembra-te de que és mortal.

O tempo aqui é curto. Algumas voltas em torno do sol e as rugas já se reúnem num rosto antes jovem. Os cabelos brancos começam a reluzir no topo da cabeça e a chamar atenção. A mente parece a mesma, com seus mil anos e mil vidas em uma. 

Mas o corpo sente o desgaste. Este invólucro feito de carne com data de validade.

Lembra-te de que és mortal. Todos os dias. Para que eles não sejam apenas segundos de um relógio esquecido. Lembra-te da tua missão, da tua vocação. Tão cedo ela apareceu. E foi deixada de lado. 

Lembra-te da sensação das palavras fluindo no papel em branco, de sua leveza e naturalidade. Lembra-te da pena azul e de tudo o que te cerca são ilusões coletivas.

Lembra-te. Pois esquecer está fácil demais.

quinta-feira, 8 de outubro de 2020

Quase

Quase platônico. Quase apenas no plano das ideias. Quase.

Quase te disse eu te amo. Algumas vezes. Mas faltou coragem e imperou o medo. Medo de que você não me ame. Somente quase.

Quase desisti vez ou outra. Doi demais pensar e sentir isso. Então eu sigo em frente. Com a cabeça quase ereta.

Quase queria sentir menos. Quase queria ser menos. Mas não consigo.

Quase amaria menos se eu ouvisse mais aos meus demônios. Tampo os ouvidos. Quase louca, quase grudenta, quase surda.

terça-feira, 6 de outubro de 2020

Amor de perdição

Helel me disse alguns anos atrás que a redenção estaria no amor. Foi assim que ele, e eu, saímos das trevas. Aos poucos, um dia de cada vez, reconectando com quem fôramos, com as esperanças perdidas e reencontradas.

Helel não pode me contar o final de sua história, pois a interrompi. Tive medo.

Ele não me contou que amar é encontrar, é se encontrar e se perder (novamente). Não me contou que essa perdição no outro é fusão de amor, desejo, ciúme, raiva, carinho, preocupação e medo. Medo de perder o outro e um pedaço de si junto.

Helel, meu amigo, você não me falou do quanto chorou ao se apaixonar por Angélica, e vê-la passar na sua frente sem poder dizer nada. Você, que naquele momento já trazia um coração antigo e calejado no peito. E ainda assim, você a amou. E não poderia ser diferente. Você a amou como eu amo. Intensamente. Fervorosamente. Não sabemos amar pela metade, percebo agora. Não sabemos traçar um limite e dizer: daqui para frente não. É nosso defeito.


segunda-feira, 14 de setembro de 2020

Amor em SP

Alguns anos se passaram. Existe amor em SP. Sempre existiu como uma semente, que hoje cresce vigorosa. Deste eu não tenho dúvida.

Ainda existe um outro amor em SP pelas letras. Por mais separada que eu esteja delas. É uma melancolia que carrego no peito quando paro para pensar. Existe amor em SP pela escrita, por mundos a serem criados com o riscar da pena no papel.

Não existe amor em SP quando me deixo levar por matérias pequenas, pelos carimbos da repartição, intriguetas e querelas políticas que não me pertencem.

Existe amor em SP quando olho para dentro e vejo uma jovem, adolescente ainda, cheia de esperança, concentrada na leitura, abocanhando livros inteiros em questão de horas. 

Existe. Mas longe de mim. Não consigo alcançá-lo. Os dias passam liquidamente pelos meus dedos, e um talento, uma vocação fica cada vez mais distante.

"Bem-vindo ao deserto do real"

Tomei a pílula vermelha e aqui estou. Presa ou liberta? Este é o real. A verdade o libertará. Ou não.  Como Doris disse no roteiro, estou ro...